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O socialismo de “características brasileiras” (por Marcos Magalhães)

A fábrica de boatos da extrema-direita

atualizado 15/04/2024 23:53

Ilustração mão com 4 dedos manipula o fantasma do comunismo Arte/Metrópoles

Os radicais de direita disseram após a vitória nas urnas de Luís Inácio Lula da Silva – e dizem até hoje – que o Brasil havia começado a dançar perigosamente às margens de um vulcão comunista. Um vulcão prestes a entrar em erupção.

Nos últimos dias, uma viagem ao outro lado do mundo da presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, ajudou a alimentar as desconfianças em relação ao novo governo.

Em visita a Pequim, Gleisi defendeu o aprofundamento das relações entre seu partido e o Partido Comunista Chinês, para promover “alinhamento cada vez maior entre os progressistas e para enfrentar o movimento da extrema direita que cresce”.

As palavras de Gleisi logo despertaram uma onda de preocupação, entre setores mais conservadores, sobre a possibilidade de o Brasil, sob novo governo do PT, vir a seguir o modelo chinês, de alto crescimento econômico, mas de partido único.

Em artigo no órgão oficial de seu partido, a presidente acrescentou novo ingrediente à polêmica. Apenas indo ao país oriental, observou, seria possível perceber “suas potências, seus problemas e inclusive suas debilidades”.

“Mas não precisamos ir à China”, alertou Gleisi, “para defender algo que já defendemos desde que o PT foi fundado: um país soberano, igualitário, com liberdades democráticas, um país desenvolvido – e um socialismo com características brasileiras”.

Ela não chegou, como poderiam temer os mais conservadores, a definir como modelo o partido que está no poder na segunda maior economia do mundo. Mas adaptou com ironia a meta desse partido de construir o socialismo com “características chinesas”.

E o que seria esse socialismo à brasileira? Como ele nunca foi muito claramente definido, abre-se muito o leque de interpretações. Os mais apaixonados defensores sonham com a revolução. E os mais preocupados conservadores temem uma ditadura ao estilo de Pequim.

O próprio Lula pouco fala do assunto, apesar das frequentes demonstrações de carinho que tem dado, por exemplo, ao regime socialista cubano. Talvez Lula possa ser definido sobretudo como um pragmático em busca de mudanças possíveis.

Outra voz pragmática, porém, pode jogar um pouco de luz sobre esse debate encabulado. O ex-ministro José Dirceu, que passou longo período submerso, começa a soltar a voz e a divulgar a precisão cirúrgica de suas análises a audiências cada vez mais numerosas.

Em recente entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo, ele não fugiu do tema. A seu ver, o país está muito longe do comunismo temido ou alardeado pela extrema-direita.

“Falam de uma revolução socialista, mas isso não está na ordem do dia”, observou Dirceu. “O ciclo histórico que estamos vivendo é contrarrevolucionário. E, pior, é de extrema-direita”.

A seu ver, está havendo um “choque de civilização”, como nos anos 1960, que encontra grande parcela da população desempregada ou sem esperança no futuro. A exemplo dos Estados Unidos, onde Donald Trump conquistou os votos de brancos empobrecidos.

A esquerda brasileira, prosseguiu o ex-ministro, “não tem força para fazer uma revolução” e deveria buscar melhorar as condições de vida da população brasileira, por meio de medidas como a reforma tributária e a mudança do sistema financeiro.

Hoje, recordou, os trabalhadores pagam altos juros nas compras de bens duráveis e mais impostos, proporcionalmente, que a população mais rica do país. “A esquerda tem que mudar isso”, defendeu Dirceu, “e tem que aprofundar a democracia do país”.

Ou seja, na visão de Dirceu, o caminho para o “socialismo com características brasileiras” passa pelas urnas e por graduais mudanças institucionais. Um dos mais respeitados pensadores do PT não vê nenhuma revolução no horizonte.

A fábrica de boatos da extrema-direita não vai deixar de funcionar por causa disso. O comunismo sempre estará logo ali, pronto a limitar a liberdade religiosa e a tocar em temas controversos como o aborto.

De qualquer forma, a entrevista de Dirceu é uma boa iniciativa no caminho de tornar o debate sobre o tema mais amplo, mais aberto e mais transparente. Assediado por uma polarização infantil e estéril, o país teria muito a ganhar com isso.

 

Marcos Magalhães. Jornalista especializado em temas globais, com mestrado em Relações Internacionais pela Universidade de Southampton (Inglaterra), apresentou na TV Senado o programa Cidadania Mundo. Iniciou a carreira em 1982, como repórter da revista Veja para a região amazônica. Em Brasília, a partir de 1985, trabalhou nas sucursais de Jornal do Brasil, IstoÉ, Gazeta Mercantil, Manchete e Estado de S. Paulo, antes de ingressar na Comunicação Social do Senado, onde permaneceu até o fim de 2018.

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