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Depois do “kit gay”, Bolsonaro apela o aborto (Bernardo Mello Franco)

A mistura de fé e política impede um debate honesto sobre o tema

atualizado 10/04/2022 1:36

Arte/Metrópoles

Na reta final da eleição de 2010, José Serra apelou ao fantasma do aborto para tentar roubar votos de Dilma Rousseff. Em desvantagem nas pesquisas, o tucano insinuou que a adversária liberaria a interrupção da gravidez. “Ela é a favor de matar as criancinhas”, acusou sua mulher, em caminhada na Baixada Fluminense.

A baixaria foi levada ao horário eleitoral. Serra se apresentou como um político que “sempre condenou o aborto e defendeu a vida”. Para sensibilizar o eleitorado religioso, sua propaganda exibiu imagens de gestantes vestidas de branco. O tucano fez pose de coroinha e prometeu governar com “princípios cristãos”.

Passados 12 anos, o tema volta a ser usado como arma eleitoral. De olho no voto evangélico, Jair Bolsonaro acusa Lula de estimular o aborto. “Para ele, abortar uma criança e extrair um dente é a mesma coisa”, atacou, na quinta-feira.

O ex-presidente tem tropeçado na língua. Há poucos dias, sugeriu que sindicalistas fossem até a casa de deputados para “incomodar a tranquilidade” deles. Uma ideia inconsequente em tempos de radicalização política.

No caso do aborto, Lula é vítima de distorção eleitoreira. O petista não banalizou a interrupção da gravidez. Limitou-se a dizer que a prática deveria ser tratada como uma questão de saúde pública. “Mulheres pobres morrem tentando fazer aborto, porque o aborto é proibido, é ilegal”, argumentou.

Atacado pelo bolsonarismo, o ex-presidente tentou se explicar. “A única coisa que deixei de falar é que eu sou contra o aborto. Tenho cinco filhos, oito netos e uma bisneta”, justificou-se, dois dias depois. Ele repetiu o argumento da saúde pública, mas passou a ideia de que recuou para não perder votos.

A mistura de fé e política impede um debate honesto sobre o tema. Enquanto países vizinhos descriminalizam o aborto, o Brasil se nega a mexer no Código Penal de 1940, que pune com cadeia a mulher que interrompe a gravidez. A lei só autoriza a prática em caso de estupro, risco de morte ou feto anencéfalo.

A proibição nunca impediu a prática. Seu único efeito é aumentar o sofrimento e o risco à saúde da gestante. Em 2019, o SUS registrou mais de 500 internações diárias por complicações decorrentes de abortos clandestinos.

Além de rebaixar o debate eleitoral, a pregação antiaborto costuma carregar fortes tintas de hipocrisia. Em 2010, a Folha de S.Paulo noticiou que a mulher de Serra já havia relatado um caso em primeira pessoa. O tucano se irritou com a reportagem, mas não desmentiu seu conteúdo. Depois do episódio, o tema sumiu discretamente da propaganda de TV.

Bolsonaro também parece ter mudado de opinião com fins eleitorais. Em ao menos duas entrevistas antigas, ele afirmou que a decisão sobre o aborto deveria ser da mulher. Seu novo discurso é tão honesto quanto certos pastores que o apoiam.

 

(Transcrito de O Globo)

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