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Garantias constitucionais entram em xeque com reforma da Previdência

Proposta do governo prioriza supostas economias financeiras, mas fragiliza direitos sociais assegurados pela Constituição

atualizado 20/06/2019 10:13

A proposta de emenda à constituição (PEC) apresentada pelo governo federal para modificar diversas regras da Previdência Social brasileira possibilita que direitos básicos e constitucionais conquistados nas últimas décadas percam segurança jurídica e fiquem sujeitos a alterações simples e fragilizadas. Especialistas afirmam que a medida prejudica o desenvolvimento democrático e amplia o abismo social existente no país.

A proposta atual determina que fatores básicos, como pré-requisitos e cálculos da Previdência, sejam definidos por leis complementares, e não mais como normas constitucionais. A diferença é que os textos constitucionais são mais rígidos e têm tramitação rigorosa nas duas casas legislativas, os quóruns são maiores e a tramitação analítica também, o que confere ao conteúdo constitucional perenidade e proteção contra retrocesso ou mitigação a direitos conquistados anteriormente. As leis complementares também têm tramitação no Senado e na Câmara, mas o processo é mais ágil e o quórum para aprovação é menor.

Para Larissa Benevides, especialista em direito previdenciário, a redução do número de votos para aprovar decisões tão importantes apresenta risco à democracia e a conquistas das minorias. “É como dar um cheque em branco para o legislador preencher. Para atender ao clamor da geração presente, a tentativa de democratizar a decisão pode configurar em um absolutismo da democracia, onde as maiorias terão a voz ouvida sem resguardar as minorias”, alerta. Segundo a advogada, casos especiais, como aposentadoria de professores e pessoas com deficiência e de assistência social, seriam os mais afetados.

Autora de um dos pareceres técnicos de impacto da PEC apresentados aos legisladores a fim de sugerir emendas, Deborah Toni defende que critérios paramétricos possam ser determinados por lei complementar para agilizar reajustes que dependam de dados demográficos e correções periódicas. “Para isso, deve-se alterar o texto proposto pelo governo. Se houver um núcleo duro dentro da Constituição será resguardado o direito social”, afirma.

As juristas advertem ainda sobre as propostas de alteração da idade mínima para aposentadoria e a capitalização individual. “Para mudar as regras é fundamental medir os riscos, e não existe cálculo atuarial na reforma. O dado necessário para identificar idade mínima, por exemplo, seria definir qual a idade média que o brasileiro se capacita para o trabalho pela idade, mas não existe esse número e sem isso não há análise do risco”, explica Thais Riedel, mestre em direito previdenciário e autora de uma das propostas de emenda à PEC. De acordo com a especialista, alterações na Previdência Social são necessárias, no entanto, para justificar as mudanças é preciso apresentar dados e estudos que expliquem cada ponto.

No entendimento da advogada, as alterações ferem o princípio básico da concepção da Previdência, pois no momento em que o trabalhador mais precisa o ganho diminui significativamente. “O direito previdenciário foi criado para tentar proteger a população das situações de risco. A exposição a riscos é algo inerente à condição humana. Qualquer um está sujeito a sofrer um acidente ou adoecer. Por muito tempo, o Estado não olhou para isso até perceber que a população não é previdente, o que gerou uma contingência e, consequentemente, tornou-se um problema social”, aponta.

Um dos objetivos da nova proposta da reforma é que o trabalhador contribua individualmente para a própria aposentadoria. No entanto, como o resgate é proporcional à contribuição, em caso de acidente ou doença graves, em que a pessoa seja obrigada a se afastar do trabalho, e fica um período sem contribuir, o valor final do resgate acaba por sofrer um grande prejuízo.

O que muda com a reforma da Previdência?

  • Hoje:
    Pré-requisitos: idade mínima de 60 anos para mulheres e 65 para homens ou 15 anos de contribuição.
    Valor da aposentadoria: 70% da média salarial de 80% dos maiores salários desde julho de 1994, mais 1% a cada ano de contribuição.
  • Proposta:
    Pré-requisitos: idade mínima de 62 anos para mulheres e 65 para homens (podendo aumentar de acordo com expectativa de vida) e 20 anos de contribuição.
    Valor da aposentadoria: 60% da média salarial de todos os salários desde julho de 1994, mais 2% a cada ano de contribuição que ultrapasse o mínimo.

Veja, a seguir, um exemplo ilustrativo. Para efeito de cálculo simples foi considerado salários fixos, sem alterações gradativas.

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Aos 31 anos, foi contratada formalmente como auxiliar de escritório (salário de Cr$ 3.674,06). Em 1994, recebeu um aumento para R$ 150,00.
Em 1995 é promovida a analista administrativa (salário de R$ 500,00) e dez anos depois recebe um novo aumento, para R$ 1.200,00.
Ela muda de empresa e é contratada como gerente administrativa, recebendo um salário de R$ 3.200,00.
Passa a atuar como gerente regional (com salário de R$ 5.100,00), cargo que ocupa atualmente.
Rosana, pelas regras atuais, poderia ter se aposentado em 2005 (aos 46 anos), quando completou 15 anos de contribuição, recebendo 85% da média salarial de 80% dos maiores salários desde 1994, o que daria R$ 315.
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Rosana completa 61 anos em fevereiro de 2020. Trabalhou informalmente auxiliando o pai aos 16 anos.

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Aos 31 anos, foi contratada formalmente como auxiliar de escritório (salário de Cr$ 3.674,06). Em 1994, recebeu um aumento para R$ 150,00.

Cicero Lopes/Metrópoles
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Em 1995 é promovida a analista administrativa (salário de R$ 500,00) e dez anos depois recebe um novo aumento, para R$ 1.200,00.

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Ela muda de empresa e é contratada como gerente administrativa, recebendo um salário de R$ 3.200,00.

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Passa a atuar como gerente regional (com salário de R$ 5.100,00), cargo que ocupa atualmente.

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Rosana, pelas regras atuais, poderia ter se aposentado em 2005 (aos 46 anos), quando completou 15 anos de contribuição, recebendo 85% da média salarial de 80% dos maiores salários desde 1994, o que daria R$ 315.

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Mas Rosana seguiu trabalhando e pensa em se aposentar logo.

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Se Rosana se aposentar hoje, aos 60 anos e 29 anos de contribuição, recebe de aposentadoria 99% da média salarial de 80% dos maiores salários desde 1994, o que daria aproximadamente R$ 2.270,00.

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Caso a proposta atual já estivesse valendo, sem a regra de transição, Rosana ainda teria que aguardar dois anos para se aposentar.

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Ao completar 62 anos, teria 32 anos de contribuição e receberia 84% da média salarial dos salários desde 1994, o que corresponde a aproximadamente R$ 1.740,00.

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Mas, e se Rosana tivesse sofrido um acidente grave em 2005 que a afastasse do trabalho por três anos e ficasse sem contribuir?

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Pela nova proposta, com capitalização individual que engloba a média recebida sem descartar os menores salários, a aposentadoria de Rosana teria impacto direto.

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Caso ficasse impedida de trabalhar permanentemente, estaria fora dos pré-requisitos mínimos para aposentadoria (46 anos e 15 anos de contribuição) e teria que recorrer a assistência social.

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De acordo com especialistas, é considerado retrocesso social tornar obrigatórios idade mínima e tempo de contribuição como requisitos para aposentadoria, diferentemente de como acontece hoje em que um é alternativa do outro. Além de modificar o cálculo da média salarial englobando todos os salários, inclusive aqueles de menor valor. “Somos um dos países mais desiguais do mundo e o sistema previdenciário é o colchão social que consegue minimamente fazer redistribuição de renda e atender necessidades básicas”, destaca Thais Riedel.