No mundo racional, democracia e ditadura são regimes antagônicos de governo. Na atual política brasileira, a definição dos dois conceitos varia em função da conveniência dos interlocutores.
O exemplo mais evidente dessa confusão pode ser conferido nas falas recentes do presidente Jair Bolsonaro (PSL). Em apenas dois dias, ele emitiu sinais contraditórios em relação a governos democráticos e autoritários.
Nessa quinta-feira (28/2), ao receber o presidente autoproclamado da Venezuela, Juan Guaidó, Bolsonaro mostrou-se preocupado com a situação da população sob o governo de Nicolás Maduro. “Continuaremos trabalhando para restabelecer a democracia na Venezuela”, disse o capitão, durante pronunciamento conjunto.
Guaidó explicitou a diferença entre os dois regimes. “Na Venezuela há um dilema entre a democracia e a ditadura, entre a miséria e a morte de nossa gente”, afirmou, ao lado do brasileiro.
Nesse contexto, os discursos têm coerência. Mas a fala de Bolsonaro perde o sentido ao ser comparada ao que ele disse dois dias antes, quando elogiou Alfredo Stroessner, ditador do Paraguai por 35 anos, entre 1954 e 1989.
A manifestação em favor do tirano foi feita durante encontro com o presidente paraguaio, Mario Abdo, na fronteira entre os dois países. Bolsonaro chamou Stroessner de “homem de visão” e “estadista”. Em seguida, fez mais uma deferência: “Aqui também minha homenagem ao nosso general Alfredo Stroessner”.
Sanguinários
Para quem acompanhou a política da América Latina no século passado, o ditador paraguaio ficou conhecido como responsável por um governo sanguinário e corrupto. Calcula-se em 3,5 mil o número de adversários mortos enquanto o general mandou no Paraguai.
Também contra Stroessner pesam acusações graves de pedofilia, corrupção e contrabando. Nada a ver com “homem de visão” ou “estadista”.
Só o oportunismo político explica a contradição. Bolsonaro age contra Maduro por que lhe interessa manter o confronto político com os partidos de esquerda no Brasil, defensores do venezuelano. Ao elogiar Stroessner, ele reafirma a posição favorável às ditaduras militares latino-americanas do século passado, outro contraponto aos adversários.
Nesse ponto, deve-se apontar, também, a incongruência da esquerda brasileira. O apoio cego e incondicional a Maduro ajuda a perpetuar no poder um caudilho que, mesmo à frente de um governo desastroso na economia e no social, mantém-se no cargo à custa de violência e manobras eleitorais.
Para quem lutou contra o arbítrio da ditadura no Brasil, essa posição não faz o menor sentido. Sob vários aspectos, o regime imposto por Maduro se aproxima mais do autoritarismo dos militares no poder do que, por exemplo, do governo democrático de José Mujica no Uruguai.
Quando reforça a tensão contra a esquerda, Bolsonaro mantém mobilizados seus seguidores antipetistas e anticomunistas. Porém, ao confundir conceitos frontalmente distintos, como democracia e ditadura, o presidente deseduca a população – exatamente o contrário do que se espera de um ocupante do Palácio do Planalto.